Quando cheguei em casa só pensava em tomar banho. Como se a água pudesse levar, junto com a poeira de meu corpo, as lembranças daquele lugar. Só que quanto mais a água quente caia sobre mim, mais o ambiente se enchia de vapor e mais eu me perguntava como aquela menina fazia para tomar banho e se, algum dia, em seus dezoito anos, ela havia tomado um banho quente.
A rua enlamaçada, a entrada daquela casa, as tábuas que demarcavam território, os inúmeros gatos, o cachorro, o cheiro de bergamota misturado ao odor fétido do esgoto e da "casinha". Sim. Porque banheiro não havia ali e sim uma peça de tábuas, com um buraco revestido de madeira, que ameaçava lembrar uma privada. E ali haviam jornais. Nenhum sinal, nem do mais rude, papel higiênico.
Por um momento pensei na música da minha infância. "Era um casa muito engraçada não tinha teto, não tinha nada, ninguém podia entrar nela não, porque na casa não tinha chão". De um forma triste e dolorida enxerguei a casa sem chão. Não me veio a imagem das minhas brincadeiras de roda, mas sim a tristeza de saber que naquela casa sem chão, sem piso, sem assoalho, aquela casa construída de tábuas velhas, que não tinha divisões e apenas uma cama de solteiro viviam 5 pessoas. Dois adultos, sendo um doente. Uma adolescente que deveria ter sonhos e duas crianças em idade de correr rua e brincar. E uma dessas crianças trazia sequelas da irresponsabilidade de seus pais.
Perceber que a bergamota era igualmente disputada pelo espaço nas mãos, da pequena de seis anos, por um felino, que por mais fofinho que fosse corria por cima daquele esgoto à céu aberto. E que a criança sorria, sem se importar ou entender o que acontecia ali.
Observar que aquela adolescente queria ser alguém. Queria terminar os estudos e fazer pedagogia. Mas qual seria a possibilidade de concretizar seu sonho, se aos 14 anos foi estuprada pelo próprio padrasto, aquele que deveria proteger. E que o fruto desse ato era uma pequena de 4 anos.
Entender que tudo que ela via como possibilidade de melhorar de vida era sair daquele lugar "porque quando vem o temporal é um sufoco". Sim. Seu único medo era os temporais. As dificuldades que a chuva trazia para ir a escola, para sair de casa, para sobreviver entre aquelas tábuas podres.
Dizem que jornalistas são contadores de histórias. Costumam criticar dizendo que vendemos sofrimento. Que midiatizamos a desgraça. Que escancaramos e fazemos um carnaval da dor alheia. Preciso contar essa história. Não como faço aqui, dessa forma de desabafo. Mas contar para denunciar que enquanto passo 70% do meu tempo conectada, consumindo informações, sob um teto com forro, dormindo em uma cama aconchegante e tomando um banho quente, existem pessoas, que a única coisa que querem é fugir da chuva. Existem pessoas que não tem banheiro em casa. Que não tem o que comer. Que acordam todos os dias para, apenas, sobreviver a mais um dia.
Sim. Fará parte da minha vida contar essa história, parte do meu currículo e faço com orgulho. Por mais que as lembranças me assombrem e insistam em se manter vivas na minha cabeça. Essa é minha pauta. Mas torço, sinceramente, pelo dia em que eu não precise denunciar coisas assim. Que não seja preciso que jornalistas escrevam essas histórias. Que possamos contar que houve um tempo em que era assim. Mas que o país cresceu, amadureceu e largou de mão a mesma política assistencialista que praticou por décadas e que aprendeu o caminho certo. Que ensinou seus filhos a pescar, em vez de dar-lhes o peixe, mascarando os reais problemas. Que o Brasil deu educação e cultura a seu povo. Sim. Porque só a educação e a cultura serão capazes de mudar a nossa realidade. Aí quem sabe essas lembranças não me assombrarão mais e os jornalistas parem de vender o sofrimento.
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