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Nunca deixou de estar aqui




Fui ver Ainda estou aqui ontem. Desde então sinto um misto de emoções. 


Preciso dizer que a minha relação com a família Paiva, vem de longa data. Eu tinha 14 anos quando conheci o Marcelo, não mais Paiva, mas já Rodas.  E foi ele que me disse que eu podia escrever. Escrever as histórias que vivia, que queria, com uma linguagem que eu me identificava e com uma narrativa despretenciosa que entrega muito. Lembro das lágrimas que derramei lendo Feliz ano Velho e do quanto o título explodiu o meu cérebro. 


Nessa mesma época eu conheci seu pai e sua mãe. Eunice já era uma defensora dos direitos indígenas e, por alguma consciência ancestral, ou influência da melhor madrastra que tive, eu me interessava pelo assunto. Rubens ainda era considerado desaparecido, mesmo que todos soubesse que ele havia sido torturado até a morte pelo governo militar. E eu, uma menina, sabia o que aquilo significava porque com 10 anos eu havia ouvido sobre a ditadura enquanto escutava uma conversa do meu pai com um tio postiço, cunhado da melhor madrastra, que foi perseguido, torturado e exilado no Chile. 


A gente vê na tela do cinema, uma família feliz. Um casal apaixonado, uma vida cheia vida, crianças correndo, brincando, o cachorro (que na vida real era um gato de rua que frequentava o escritório de Rubens e a casa da família) Pimpão sendo mais uma diversão. Sorrisos, tantos sorrisos. Há jantares, jogos, leituras de cartas e filmes em família. E de repente, aquele pai, aquele marido; aquele amigo, é levado por militares à paisana e some. Desaparece da tela, da vida, deixa um buraco. No lugar dele, ficam outros homens, mal encarados, vigiando cada respiro daquela família. 


Então aparece o buraco pro qual Rubens foi levado. Eunice e a filha mais velha também são levadas. De uma forma sutil, vemos a tortura ao qual aquela mulher é submetida. Ouvimos os gritos, imaginamos. E ainda que a gente saiba o final da história, torcemos por um plot twist e um final de conto de fadas. 


Mas isso não vai acontecer. Nem na tela, nem na vida. Eunice sorri, Marcelo sorri, as irmãs sorriem.  É a resiliência diante de uma tragédia provocada. E  a vida segue, mas o vazio fica. Todos os momentos que Rubens não teve, todas as lembranças que os militares roubaram a sua presença da família ficam no subtexto das imagens na tela.  Um vazio que um atestado de óbito 25 anos depois não preenche. 


A gente sai do cinema arrasado. Com medo. Poderia ter sido qualquer membro da nossa família, assim como foi com meu tio postiço e com milhares de outras pessoas que nunca voltaram para casa ou encontrados os corpos.


A gente sai do cinema encantado. Com a obra de arte escrita sobre a sua própria história do Marcelo, com o Selton devolvendo a vida e a humanidade a Rubens, que para muitos de nós era, até então, apenas um nome, um rosto, um militante da democracia. Com a Fernanda e o luto de Eunice tão bem representado, dando vida aquela fotografia, quase uma afronta ao governo que matava e torturava quem não concordasse com ele. E com os cinco minutos de sua mãe a primeira Fernanda, na tela,  que com um olhar entregou toda a dor, a ausência e coragem de Eunice ao longo da vida. 


A gente sai do cinema indignado, com os corpos  nunca  encontrados, com a impunidade em torno dos torturadores e militares. Com o fato de 40 anos depois ainda haver alguém capaz de defender um governo militar ou ideias como tortura e assassinatos. 


Hoje Bolsonaro foi indiciado. E eu espero ansiosa sua prisão.  Mas não dá pra deixar de pensar que se conhecêssemos de fato a nossa história, se não houvesse a anistia concedida em outros tempos, se as leis de proteção à democracia fossem mais severas, nós nem conheceríamos ele.  


Ainda estou aqui, outro título de Marcelo que explode meu cérebro, pode ter muitos significados e interpretações. A presença de Rubens, o fato de não haver um corpo para ser enterrado, as lembranças que ficam, a doença de Eunice ou o fantasma da ditadura, não mais escondido em seus porões, mas rondando a nossa democracia, ocupando cadeiras nas câmaras e assembleias do país. 


Ainda estou aqui é uma obra de arte, mas mais que isso um registro histórico daquilo que vivemos e fingimos que não aconteceu.

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