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Das perdas que a gente tem na vida

A primeira vez que me lembro de perder alguém foi com sete anos. Era pequena e não entendia ao certo o que havia acontecido. Estava tudo bem, eu brincava em casa. Minha mãe conversava com uma amiga na sala.  Tocou o telefone eu fingi que era secretária eletrônica e do outro lado da linha minha tia falou "chama a tua mãe". Sem rir da minha brincadeira ou falar comigo. Percebi que era sério ao ouvir as reações da minha mãe. Alguma coisa tinha acontecido com meu padrinho. Algo sério mas ela não me falava o que. 

Em seguida chegou o meu pai de carro. Sai com ele para irmos ao aeroporto tentar encontrar minha tia que vinha com meu padrinho da praia. Era algo sério demais, pra vir de avião da praia... Mas ninguém me falava nada. Voltamos pra casa da minha mãe. Chegou minha tia, meu tio e minha prima do interior. Minha prima ficou comigo e com a minha mãe em casa. E meus tios saíram pro hospital pra ver meu padrinho. Minha prima chorava demais. Não estava acostumada a ficar sem os pais. Meu tio voltou e dormiu com ela. E eu dormi com minha mãe. No meio da noite eu acordei pra fazer xixi e meu padrinho estava no corredor. Ele me disse que estava bem e eu voltei a dormir. No outro dia pela manhã, quando acordei falei pra minha mãe que ele estava bem. Contei do nosso encontro no corredor. E ela me contou que ele havia morrido. Mas eu não fui ao velório. Eu fui passear com meu tio e minha prima e nos entupimos de doces e brinquedos. O dia foi muito divertido. Mas eu nunca dei adeus ao Dado. E última foto que eu tirei com ele foi no meu aniversário. E eu estava emburrada porque eu estava brincando e a minha mãe me fez parar pra tirar aquela foto. E ele estava lá com o maior sorriso do mundo. Sendo o melhor padrinho que eu podia ter. E eu nunca dei adeus a ele. Depois eu perdi outras pessoas. Um tio, a  única avó que eu conheci, outro tio. Até que chegou o dia de dizer adeus pro meu pai. Eu já tinha 24 anos. Já entendia melhor o significado da morte. Eu pude me despedir. Mas mesmo assim doeu. Mesmo tendo passado os dez anos anteriores me preparando para o dia em que ele morreria. Mesmo ele tendo contrariado todas as expectativas médicas. Eu não estava preparada. Apesar de sabermos que esse dia um dia chegaria, eu não pensava e nem podia imaginar que ele iria nos deixar. Mas esse dia chegou. E ele partiu, tranquilamente, deitado em sua cama, talvez do jeito que ele quiz, podendo ter fumado um cigarro antes de ir se encontrar com os seus lá em cima. Agora eu perdi de novo. Perdi um segundo pai. O meu pai preto, pai de criação, o meu nenei ou o Neiiiii, como todo mundo ouvia eu chamar. Eu não conheço a minha história sem ele. Desde que me lembro de mim como gente, das minhas primeiras e mais remotas lembranças de infância ele estava lá. Fazendo as minhas vontades. Batata frita quando eu me recusava a comer outra coisa. Raviollis de queijo para comemorar os meus aniversários. Me cuidado na piscina, me levando pra natação. Me levando em festas. Me buscando em festas. Me levando pra almoçar na minha vó. Recebendo os meus amigos. Dando palpite na minha vida, nos meus namorados. Me dando bronca por eu ser bagunceira. Arrumando meu quarto e escondendo todas as minhas coisas. Brigando comigo por eu andar pelada dentro de casa. Me mimando. E depois mimando a Eduarda e o Pedro Henrique. A gente brigou tantas vezes. A gente riu tantas vezes. A gente chorou um bocado juntos. Desde que deixei de morar em Porto Alegre cada vez que chegávamos era uma festa. Os olhos dele brilhavam. E quando eu  inventava de fazer surpresas ele era o meu cúmplice. Ele sempre foi. Até uma vez quando resolvi colocar uma barata dentro do ovo de chocolate de uma vizinha que eu não gostava ele foi meu cúmplice. Ele não tinha maldade. Era uma criança grande que ficava brincando de me dar sustinhos. Mesmo quando eu já tinha crescido e não achava mais graça. E na hora de levar a bronca da minha mãe ele me defendia. Me protegia. Ele me defendia de tudo e de todos. Eu sempre era a certa. Eu sempre era a melhor. Eu sempre era a mais bonita. E ele sempre foi o meu herói. Ele virou meu parceiro. Ia pras festas junto. Comprava vinho doce só porque eu gostava. Se tinha algo que deixava ele feliz era fazer a gente feliz. Mesmo quando ele estava ranzinza, reclamando da vida. Ainda assim ele fazia a gente feliz com uma nova invenção na hora do lanche ou com um almoço que a gente nunca esquecia e ele nunca mais fazia igual e fingia não lembrar da comida que a gente falava. Ele passou a vida dele conosco. Nos dedicou seus melhores anos. Nos amou. Nos aconselhou. Nos protegeu e principalmente fez a gente mais feliz. Ele era leal. Com quem eu vou ficar conversando na cozinha da minha mãe agora? Fumando um cigarro e perguntando o que eu devo fazer? Quem vai me dizer que os sapatos não combinam? Quem vai mandar eu trocar de roupa? Quem vai fazer o meu prato favorito? Quem vai me dizer como assa um peru ou como faz tal prato? Vai ser difícil, Nei. Vai ser difícil voltar pra casa e não te encontrar lá. Vai doer não dividir contigo tantas coisas que ainda vão acontecer nas nossas vidas. Mas eu entendo que era a tua hora e depois de tantos anos de amor, lealdade e gratidão seria injusto da minha parte não pensar que tu merece esse descanso. Fica bem que eu também vou ficar. Mas por enquanto ta foda. 

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