A garrafa, encrustada de caramujos e suas conchas, havia sido trazida pela ressaca da noite anterior. Ela sabia porque todo dia percorreria aqueles quilômetros de praia deserta recolhendo o lixo, desenrolando tartarugas, desencalhando baleias, tentando salvar a vida, que mesmo naquele paraíso sem a interferência do homem, ousava poluir a paisagem.
Quase raramente, outro ser, como ela, surgia. Peregrinos e pescadores. A solidão, que a muitos assombrava, a ela servia de companhia. Gostava da sua voz quando cantava caminhando na areia. Adorava os segredos que o vento cochichava em seu ouvido, as notícias que o sol trazia, as tristezas que a chuva lamentava.
Mas aquela garrafa, de rum barato com o rótulo machucado pelas ondas, casa dos mariscos, trazia um papel dentro. A rolha, lacrada com sebo de vela, parecia ter protegido o pergaminho que sambava na garrafa, implorando para ser lido.
Abriu a garrafa com medo, talvez não quisesse saber. Mas a curiosidade, aquela aguçada pela imaginação, pelos traumas e lembranças, gritaram mais alto que o sussurro do vento. Com cuidado, deixou o papel escorrer pelo gargalo, para a palma de sua mão.
Amarrado por um pequeno corte de cetim azul, o papel amarelado parecia ter a idade das imensas tartarugas centenárias, que escolhiam, como ela, aquela praia para descansarem.
Letras desenhadas, com as pontas rebuscadas, em tinta preta desbotada, se embaralharam em suas vistas. Demorou a entender o que elas diziam. A falta de prática, se mostrou como um branco na memória, que logo deu espaço a régua estalando em seus dedos e os joelhos marcados pelo milho.
Acompanhando o rastro da tinta, foi ouvindo sua própria voz, decretando aquela sentença:
O tempo, tão relativo, como a própria existência, depende apenas das escolhas que fazemos em nossas vidas. Mas é incontestável que um dia ele chega ao fim. Hoje chegou para nós.
A garrafa rolando pelo chão procurou o mar. O vento conduziu a dança do papel, que lentamente se afogou nas ondas. Ela sorria, descansando para sempre naquele lugar que escolherá como lar.
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